Ilustra - Renascer
Ilustração: Caroline Gomes/Coletivo Boitatá

Bauru é ponto de chegada. Ponto de partida. É entroncamento que traz e leva aspirações. Por isso, sua face é audaz. Em meio aos míticos trilhos de sua ferrovia, hoje sucateada, mostra-se candente pelo progresso como se advertisse, a todo instante, que é preciso desbravar um cerrado já desbravado. A memória é preservada nas histórias dos velhos e o destino é arquitetado nas mãos dos jovens. Bauru é passagem, mas também fixação. É menos provinciana que agregadora. Aos estrangeiros que aqui chegam lhes é apresentado um amparo impregnado quase no meio do estado de São Paulo. A reestabelecer rumos para pessoas de todos os cantos. Do Brasil e do mundo. A cidade se fundamenta, então, na convivência e na diversidade. Árabes, italianos, latino-americanos. Nordestinos, paulistanos, mineiros, gaúchos, candangos. É fácil, com isso, perceber um ar cosmopolita. Sim. Cosmopolita. A impertinência de recepção forçada aos desavisados que aqui aportam é que justifica um espaço em ebulição.

Para isso, o calor de Bauru – o verão é senegalês – se adere ao cotidiano e contamina os corações. Deve haver disciplina nesse entrosamento com a cidade. Eis o preço que é cobrado a respeito de seu temperamento. O centro-oeste paulista como ambiente e a resistência como estilo se dobram diante de um namoro entre a honra e o trabalho. A cidade é dos trabalhadores! Não há tempo para divagações! Esses avisos ensurdecem-nos. Porém, a vida que segue é suave, quase tediosa. Paradeiro da obstinação, Bauru abriga comunidades as mais variadas: ferroviários engajados, sambistas orgulhosos da negritude, uma turma evangélica forte a rivalizar com religiões afro-brasileiras tão agudas quanto. O olhar dos bauruenses médios se constrói na antipatia revestida de simpatia. Ou vice-versa. Já não há bauruense típico, entretanto. Ao se pisar em seu solo, está posta a condição de sujeito indomável, que se reconhece protagonista de seus nortes. Bauruenses, portanto. Todos. A prestação de serviços e o comércio que a todos emprega e sustenta trazem rispidez à rotina.

Mas nesta mesma paisagem se apresentam, ludicamente, os tempos idos, os voos de azes, as histórias configuradas em bordeis tombados, as agruras e os figurões da política, os conflitos. Resistir não tem lastro, afinal de contas. Eis outra lição ensinada nestas terras. E é nessa disposição que encontramos a dignidade arenosa dos que aqui ficam e vivem. Como diz Caetano Veloso, em “Nu com a minha música”, canção símbolo sobre o interior paulista: “Deixo fluir tranquilo naquilo tudo que não tem fim”. A vegetação arquejada e o clima quente se unem a locações quase antagônicas: o frenesi urbano, os vazios, as ocupações. Brotam prédios todos os dias, aqui e ali. Especulação imobiliária. Gente saindo pelo ladrão. Junto aos blocos de concreto, nascem atores irrequietos. Resistentes. O hip hop é a voz das meninas e meninos das bordas do município. A caipirice se entrosa com as vocações de uma cidade moderna, em um impressionante mosaico de diferenças. No mais, as rotinas do Jardim Godoy se ligam à desenvoltura do Jardim Redentor e da Vila Independência. Os moradores do núcleo Geisel e do Mary Dota se apertam enquanto os residentes dos Altos da Cidade e do Jardim Estoril se esparramam. Luta de classes. O tropel da Batista de Carvalho em datas concorridas acirra o trânsito de uma cidade que refugia os veículos, os transeuntes, os pingentes. E não param de chegar os universitários de toda a parte, os profissionais liberais, os pacientes do Centrinho. Muitos. A cidade abriga, acolhe, restaura os forasteiros e os visitantes. Eis a sua nítida vocação. O renascimento de qualquer peregrino se adéqua a esta cidade de todos. Que renasce todos os dias. Sem limites. Em uma pulsação que nos convida a recitar que “vivemos na melhor cidade da América do Sul”, possivelmente. Bauru é amiga do tempo, me chama a intuição. Passado e futuro se encontram. Há sutilezas no clássico sanduíche com rosbife e queijo derretido, há anseios no andar das avenidas largas que carregam histórias. Nos bairros limítrofes encontramos carentes e portadores de gritos pressionados e abafados. Há outros cenários. Muitos outros. Praça da Paz. Vitória Régia. As ruínas da Estação Ferroviária. Noroeste. A Vila Falcão dos ferroviários. São tantos os desencontros de uma cidade que recomenda roteiros de renascimento. Não se sai imune ao seu desajuste. À sua passagem.

A beleza não se mostra logo de saída, é bom que se diga. É preciso de tempo, no jogo da sedução, para entender que a cidade se revela diante das percepções. Do coração. Das vidas. Dos mundos. Bauru nos exibe ecologistas, velhos comunistas, militares reformados, astros da televisão e do futebol, um astronauta até. O futuro se mostra como uma necessidade: de se recompor com o passado de modo quase obsessivo e de se reinventar no porvir. Assim, se 2014 será um ano gordo para o nosso país, Bauru nos envolverá em uma acomodação de afeto. A repetir incansavelmente a receptividade e a esperança. Renascerá no ano que entra mais robusta, abrigando as mesmas causas improváveis de resistência e as mesmas consequências duradouras de anfitriã. Na chegada e na partida. Brindemos, portanto.

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