Trancada em casa, cuidando do filho, que tem asma e cardiopatia, e lidando com os riscos do marido ser médico, Marcela Mattar se viu em um momento de estresse. A melhor forma que encontrou de lidar com os sentimentos durante a quarentena foi transformá-los em palavras.

O primeiro texto, escrito no segundo dia do isolamento, falava sobre casamento e foi publicado em sua página do FacebookCronicamente“. A publicação lhe redeu 1.800 curtidos e 198 compartilhamentos. Segundo Marcela a repercussão se deve à identificação das pessoas com a situação descrita.

A partir daí, as crônicas se tornaram frequentes e ganhou até um título “Diário da Pandemia“. Hoje, no dia 129 do isolamento, a página já conta com quase 30 mil fãs, que se tornaram uma família para a paulistana residente em Bauru há 14 anos.

A afinidade de Marcela com a escrita vem da infância, quase como uma herança do avô, jornalista. Tendo-o como principal leitor, ainda criança, ela começou a juntar suas primeiras palavras em textos para ele ler. “Acho que desde que me entendo por gente eu sou melhor escrevendo do que falando, conta a escritora, com a voz embargada por relembrar do passado.

Conversamos com a escritora Marcela Mattar para saber um pouco mais sobre como o desabafo no Facebook se tornou um projeto de trabalho e tem acumulado inúmeros leitores internet afora. Confira o bate-papo:

– Marcela, como e quando começou sua paixão pela escrita?

É coisa antiga, sempre escrevi desde muito pequena. Meu avó era jornalista, já falecido, ele trabalhou em vários jornais em São Paulo e sempre tive acesso a muitos livros em casa. Então sempre gostei muito de ler e escrever. A princípio, eu fazia histórias para o meu avô ler e acho que desde que me entendo por gente, sou melhor escrevendo e lendo, do que falando.

– Até então você já havia compartilhado seus textos na internet?

Eu comecei a publicar em novembro de 2019, a decisão veio antes da pandemia. A princípio [as publicações] eram uma vez por semana, aos domingos.

– Como foi a decisão de colocar os textos no Facebook?

Ela surgiu na minha psicanálise, porque eu sempre gostei de escrever, mas eu não tinha muita coragem de tornar os textos públicos. Foi um passo nesse sentido. Acho que “Cronicamente” foi por isso, as crônicas eram um resultado da análise. Então é uma brincadeira, de ter começado por conta da psicanálise e por ser crônica.

– E de onde surgiu a ideia do Diário de Pandemia? Foi algo espontâneo?

Surgiu em um dia que, logo no começo eu estava aqui em casa estressada, e foi mais um desabafo com as pessoas. Na verdade eu achei que ninguém nem ia ler, no começo eu tinha mil curtidas – de familiares, amigos e amigos de amigos – eu nunca imaginei que iria crescer tanto. Então a ideia do Diário da Pandemia foi algo espontâneo, foi no desespero. Depois eu vi as pessoas doando várias coisas, cada um doando o que sabia fazer, não só material, e eu queria doar alguma coisa minha também, além da ajuda material. Eu pensei “se conseguir distrair alguém, uma pessoa que for, com essa página, dar um pouco de risada, conseguir pensar em outras coisas, eu vou ficar feliz”. Então escrever é a minha forma de ser e me ajuda a processar o que está acontecendo no mundo.

– Quando você começou, pensava que seria algo diário mesmo ou foi firmando esse compromisso com o tempo?

No começo, eu coloquei Diário da Pandemia, mas não sabia que iria colocar exatamente todo dia. Mas a página foi crescendo, foi tendo comentários, virou uma família virtual mesmo. Eu me senti acolhida, porque a minha família é de São Paulo e a do meu marido de Florianópolis, então aqui em Bauru mesmo só tem eu, meu marido, meu filho e as amigas que fiz aqui. E como ninguém está saindo de casa, foi uma família virtual que fiz e uma forma de estar em contato com a minha família e meus amigos de outras cidades.

– No começo, você achava que duraria tanto tempo e teria assunto para falar todo dia?

Eu achava que a quarentena não duraria tanto tempo, eu tenho brincado que a quarentena é de quarenta semanas, são nove meses e no final vai todo mundo nascer, porque está demorando muito. Para escrever todo dia, eu acordo e escrevo pela manhã ou na noite anterior.

– Aliás, como funciona a questão dos assuntos que vai abordar?

Não é difícil achar sobre o que escrever, principalmente neste cenário atual que estamos vivendo. É só abrir a internet para achar algo sobre o que podemos falar. Até mesmo dentro de casa e com os amigos, minha família é enorme, então sempre tem alguém contando algo que aconteceu. Eu metabolizo pela escrita.

– Você fala que ser escritora é uma forma de enfrentar o mundo. Acredita que esse diário te ajudou a enfrentar a situação? De que forma?

Realmente, esse diário com certeza me ajudou. Faz muita diferença pra mim e tem me ajudado a enfrentar essa situação. Os comentários, a interação de outras pessoas, tem as pessoas que não comentam, mas mandam mensagem privada. Até quem me liga para contar histórias engraçadas, acabei tendo reaproximação de amigos que eu não falava há algum tempo.

– Você traz muito humor para os textos. É uma característica sua ou surgiu por conta das circunstâncias do momento?

A minha mãe fala que eu sempre fui engraçadinha, sabe aquela coisa de mãe de achar que a gente faz pra provocar. É um jeito de eu levar a vida, eu tento dar risada, porque não dá pra fazer muita coisa nesse momento. Então acho que foi algo que sempre tive, por isso, foi algo que surgiu na minha análise, eu tinha vergonha de expor, porque eu achava que não tinha muito mérito. Eu já havia recebido críticas por isso, como se não fosse muito sério, como se no meio literário, aquilo não tivesse tanto valor.

– Dentre as crônicas, qual fez mais sucesso do Diário de Pandemia? Por que acredita que as pessoas gostaram mais?

A crônica que fez mais sucesso recentemente foi o do “Faraó, vendo você passar por 2020”. Acho que as pessoas gostaram mais, porque se identificaram, tem muita coisa bizarra acontecendo ao mesmo tempo, então todo mundo se identificou. O outro que teve bastante engajamento foi o do banco no parque [Vitória Régia], que foi polêmico. Eu adoro Bauru porque é uma cidade que propicia a gente escrever sobre assuntos diferentes com humor.

– Já são quase 30 mil fãs, como é esse contato com tantas pessoas mesmo em isolamento?

O contato está sendo ótimo, mesmo sem sair de casa. São pessoas com as quais tenho oportunidade de falar e conhecer outros pontos de vista e outras maneiras de ver o mundo, porque não são só pessoas da minha cidade ou de Bauru. São pessoas do Brasil inteiro e até fora do país, então está sendo bem legal.

– De alguma forma essa relação tem ajudado durante esse período?

Tem me ajudado a manter a sanidade. Eu comecei para doar algo meu, mas estou recebendo muito em troca. Fiz essa família virtual, agora tem uns que sempre comentam, então eles ficam esperando.

– A sua primeira crônica foi em 18 de março. Hoje, 129 dias depois, o que você pode ressaltar de tudo o que viveu?

Parece que faz uns dois anos, eu tenho a sensação de que o tempo está passando mais devagar e eu acho incrível ter a oportunidade de estar vivendo tudo isso com a página. Conhecendo tanta gente, tantas formas de ver o mundo e ao mesmo tempo que está todo mundo fechado, eu tive a oportunidade de me abrir para o mundo. Mas é muito triste também porque tem muita história bem difícil, de pessoas que estão ficando doentes, mas tudo o que eu vivi estou achando impressionante, porque eu nunca imaginei que isso fosse acontecer.

– Para finalizar, quais são os planos profissionais para o futuro?

Está difícil fazer planos, acho que a pandemia veio para mostrar para a gente que não adianta fazer planos. Mas eu estou lançando o livro que leva o mesmo nome da página “Cronicamente” e está em pré-venda já, pela Editora Patuá. É um livro só de crônicas, a maioria delas foi escrita antes da pandemia e tem até uma só sobre Bauru, porque eu vivo aqui agora e já virei bauruense. Fora isso, estou focando mais em sobreviver, manter meu filho saudável, porque ele tem asma e cardiopatia, com o meu marido médico, está bem estressante. Para o futuro, meus planos são passar por isso da melhor forma possível, com todo mundo bem.

Para acompanhar Marcela Mattar, curta a página “Cronicamente” no Facebook. Para saber mais sobre o livro, acesse: www.editorapatua.com.br/cronicamente-marcela-mattar.

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