Quase seis da tarde quando a escultora, coando um café gostoso, ouve a campainha tocar. O correio. Corre da cozinha até o portão: em mãos uma carta. Uma correspondência com o selo municipal. A escultora retorna à cozinha, serve um café, e com uma faca de dois gumes, corta um pedaço de bolo de fubá e abre o envelope timbrado.

“Prezada escultora, no próximo agosto, para comemorarmos o aniversário da cidade, que tal confeccionar uma escultura do sanduíche Bauru como um personagem em tamanho real, um boneco do Bauru de Itu, um bauruzão? Podemos contar com você? Mãos à obra! Ass. Prefeitura Municipal de Bauru”.

Dentro da boca da escultora, o bolo de fubá se desmanchava em farelinhos em um movimento de abre e fecha de sua arcada dentária, dentes afiados triturando o fubazinho com a amilase salivar. Quando terminou de ler a carta, a boca ficou imóvel, como se os farelinhos regidos pela língua brincassem de estátua.

Na sua cozinha retrô de azulejos azuis, a escultora teve uma sensação estranha mas deliciosa, lembrando o experimentar e desconhecer uma novidade pela primeira vez. Parada, sentia a sua cabeça em movimento, e de cada um dos 7 buracos do seu rosto partia um trem em miniatura. A sua cabeça agora era uma malha ferroviária, quente e silenciosa, onde ferviam ideias e pequenos trenzinhos corriam de um ponto ao outro e cruzavam, noroeste e nordeste, carregando e conectando informações pelos trilhos.

A escultora estava plena, feliz pelo convite e com numerosas propostas para a criação. Já se imaginava inaugurando a escultura do bauruzão, o sanduíche gigante que ficaria eternizado pelas suas próprias mãos. Costumeiramente, antes de iniciar o seu próximo trabalho e desenhar no papel, vestiu roupas leves e confortáveis, calçou o seu tênis esportivo e foi correr pela cidade.

Como um foguete, desceu a Avenida Duque de Caxias no sentido da Vila Falcão e foi abençoada por uma vista maravilhosa: o que se via era o caso de acaso, sol de soslaio, um lindo arrebol de uma tarde que se despia e se despedia às seis e meia. Ao olhar para frente, do alto da avenida, avistava no horizonte nuvens amareladas e rosadas, e com elas, a sensação de que acompanhavam a cidade desde a sua fundação. Descia correndo um grandioso tobogã de asfalto, sinestésico, iluminado pelos automóveis autores da sinfonia urbana. Do cume à base, ao chegar no Viaduto 23 de Maio, parou no meio da travessia e olhou para os dois lados, a escultora estava no meio da cidade, sob o viaduto. Abaixo dela, tipos de veículos não paravam para contemplar.

Em silêncio e suspensa, sentiu-se repartida. O viaduto era o meio que dividia a cidade em duas partes: olhando de cima dele, de um lado A à direita e do outro B à esquerda, percebiam-se partes diferentes de um pão francês cortado ao meio, em que suas duas metades (A e B), ora unidas, aproximavam-se pela liga do recheio – este um viaduto ou uma combinação de rosbife, fatias de tomate, picles, queijo derretido em banho-maria, orégano e sal.

Foi então que a escultora percebeu que a cidade também tinha a arquitetura de um sanduíche. O viaduto era abraçado pelas metades de uma cidade panificada, feita com farinha e cultura, eternamente pronta para ser devorada por uma mordida.

Voltando para casa, extasiada pelos seus pensamentos guiados pelos trilhos da cabeça, a escultora marcou no papel em branco a sua primeira ideia para criação do personagem “bauruzinho” (apelido carinhoso que nasceu ao tocar o papel): o sanduíche deve ter os braços longos – para alcançar todas as margens – e abertos – para caber todas as partes.

Somente assim, o Bauruzinho poderá segurar e conter, ligar e conectar, partilhar e conciliar as duas partes da cidade. E de braços firmes, completamente receptivos ao que vier e está por vir, será o símbolo nacional desta cidade do interior.

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