Qual a necessidade de dar saber ao sabor? Como interpretar o líquido em palavras? Para o genial psicólogo russo Lev Vygotsky, pensamento e linguagem possuem origens diferentes. Quando crianças, ao descobrirmos a existência de um nome para tudo, passamos a apresentar representações a isso. Tal representação é, na verdade, uma tradução, uma certificação do que interiorizamos ao interpretar os objetos com os nossos sentidos.

Ao degustar um vinho, buscamos nomear o que os nossos órgãos fundamentais para degustação captam dos estímulos sensoriais emitidos por grande parte das mais de quinhentas substâncias existentes na bebida. Igualmente é a linguagem poética.

Literatura e vinho anelam-se. De um lado, a poesia. A caminho da construção textual, um criterioso processo de seleção vocabular e de linguagem associados ao significado no desenvolvimento de períodos sustentados pelas figuras de linguagem. Assim, a literatura, tal qual o vinho, materializa impressões, percorre reminiscências, reverbera o sublime.

Do outro, a poesia engarrafada, o vinho. Se o é jovem, maduro em suas notas de carvalho e envelhecimento, à análise visual e olfativa a fim de certificar a volatilidade dos aromas ao teor alcoólico. O prazer, o fato motivador, o motivo circunstancial. A mão, num gesto acolhedor, recepciona a taça. O nariz hospeda os aromas. Um movimento em rotação agita o líquido dos deuses, aumentando a superfície de evaporação. O brilho do vinho cintila. Por fim, a degustação. Ele passeia por toda a boca. A descoberta de sensações nunca antes imaginadas protagoniza-se, compreendida por expor sua vocação de tocar magicamente o espírito.

Charles Baudelaire, um dos mais influentes poetas franceses do século XIX, dá voz e alma ao vinho no poema “A Alma do Vinho”, da obra As Flores do Mal. O escritor o personifica, ao discorrer a alegria que o vinho sente ao interiorizar-se em um homem exaurido de tanto trabalhar.

Nesse encontro entre o homem e o vinho, constrói-se, com singular sensibilidade, o poema. “É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo, é a única questão. Para não sentir o fardo horrível do tempo que esmaga nossos ombros e nos enverga para a terra, é preciso embriagar-se sem descanso. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à sua escolha. Mas embriague-se!”

A valer, a motivação à embriaguez, longe estaria do entorpecimento imobilizador, da fala ziguezagueante. Há aqui uma convocação à liberdade imaginativa, em cujos pensamentos depositam-se lembranças imperecíveis. Um chamado a sonhar acordado de que tão importante quanto às nossas realizações, tal qual um rio da passagem de uma margem à outra, é definitivamente o que fazemos durante a travessia para o nosso constante melhoramento, para a nossa necessária reforma íntima.

Embriaga-se como chamado à revisão das nossas atitudes, igual a um livro que, em sua próxima reedição, busca a correção de falhas e melhorias.

Embriaga-se como um aceno a descortinar o que de improvável e impossível estabeleceram e adestraram-nos pelas convenções sociais. O que e o quanto da nossa fidelidade canina fareja obedientemente em cotidianos adestradores.

Embriaga-se pela verdade esquecida de acontecer, pela interjeição reduzida. Pela despedida. Pela garoa oblíqua que proíbe um céu superlativo em azul. Pela rima ordinária. Pelo pretérito (im)perfeito. Pela alma enamorada. Pelo amor sem sexo, sem nexo, circunflexo. Embriaga-se pelo excesso da moral impoluta, da mansuetude morna do copo com água, da segunda-feira com despertador, da geometria simétrica dos chinelos que dormem ao lado da cama.

Embriaga-se de tinto e de tanto. Pelo sangue dos excluídos cansado de reclamar seus direitos. E o trabalhador, escravo martirizado pela ditadura mecânica do Tempo. Por isso, a proposta da embriaguez. Embriagar-se pela autonomia sem violar a vida e a virtude.

Embriagar-se como iniciativa e acabativa das nossas ações diante do mundo. Embriagar-se igualmente se lê um poema, penetrar no universo das palavras, absorver a plenitude de seus significados, bebendo-o a fim de aplacar a sede da alma. Por isso, a poesia estabelece morada em uma garrafa de vinho.

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