Toda parede tem história. Uma parede é definitivamente uma memória: dentro da nossa cabeça – dentro da nossa cidade. Quando você olha para uma parede, inevitavelmente, uma rachadura se abre como porta de labirinto, fluem as ideias, surgem pensamentos. Impossível não lembrar a história da sua parede do coração. Você já parou para reparar, por exemplo, como é a parede que você passa diariamente no trajeto ao trabalho? Desde sempre no mesmo lugar? Qual sensação essa parede te traz? Experimente observar o entorno dela, o que está em volta, a parte branca do olho… Meu tio morava aqui perto. Aqui antigamente não tinha semáforo. Nesta esquina, dei meu primeiro beijo. Na minha época, essa rua descia. Eu que colei essa figurinha, tirei do meu caderno da quarta série. Apareceu aquela mancha ali quando arrastaram essa mesa no seu aniversário. Um dia esse muro de casa amanheceu escrito SANDRA, TE AMO, tivemos que pintar. E eu nunca mais te vi em Bauru. Algumas paredes ainda lembram você, definitivamente, inevitavelmente. Lembram uma história. Uma história de amor com várias paredes, vários trajetos. Me pego refazendo estes mesmos trajetos, agora, sob este texto. E eles ganham novos significados, novos pensamentos, novos atravessamentos, novas formas de olhar além. Imagens, as paredes formam imagens. Uma parede pode lembrar uma pessoa. E um conjunto de paredes? Um álbum de paredes. Fico pensando como seria te rever em Bauru, depois de tanta coisa, tanto tempo, tanta parede, tanto tempo parado. Acho que eu ficaria parado. Nada está isento. Tudo me lembra alguma história, como se uma mesma foto nossa, impressa, tivesse sido colada nestas paredes que cruzávamos naquele tempo. Nós dois nas paredes, parados, e o amor nas paredes, o amor em outdoor. Ainda quero conhecer quem foi que descolou todas as nossas fotos das paredes dos trajetos, após irmos por água abaixo. Talvez nós mesmos. As paredes ainda são as mesmas. Talvez nada realmente descole, apenas sofra com os impetuosos pingos da chuva que formam as enxurradas.

***

No pequeno espaço que separa a rua da calçada, o meio fio, uma enxurrada de memórias desliza por pedras, buracos, entulhos, graminhas e restos de comida, após uma chuva forte de trovoadas. Navegando aos trancos e barrancos, sob estas memórias fluviais entre os quarteirões de Bauru, está um barquinho de papel, do papel mais sujo que jornal, mais comum que saco de pão, mais frágil que aquele utilizado para apoiar as batatinhas recém fritas, ou como toalha para secarmos os óculos depois de lavar. Neste barquinho, alguém escreveu com giz de cera, em letra de mão: NÓS. A grafia tem as três letras próximas, grudadas por uma única linha. Assim, a mesma linha desenha a chegada, pontua a partida, o começo da palavra, o seu fim, a linha constrói suas margens. Leia como a linha da história, a linha da palavra NÓS. Abaixo dela inscrita nas dobraduras do papel barco, a enxurrada de memórias segue incansável, não há quem a segure, tem ímpeto de boiada, tem sua ordem por decifrar, e à medida que passa por um quarteirão, carrega consigo mais pedaços da rua, acompanhantes da sua jornada. Incorpora ideias, bitucas, perfumes, notinhas de máquinas de cartão, a enxurrada é pantagruélica, é imantada, é um super-remelexo. Sua unidade é sua confusão. Temem os que querem acreditar na enxurrada da memória. Eu dou fé. Mas seu fluxo de chuvas e pensamentos, a sua constante transformação, nada garante confiança. Uma lupa sobre esta enxurrada revelaria pequenos retângulos vermelhos em placas de metal com a seguinte frase: ALUGA-SE ESTE ESPAÇO TEMPORARIAMENTE. Equilibrando-se nas suas ondas, sombras e sobras, o barquinho NÓS ainda navega com dificuldade, das tantas águas que por ele passaram, já não se lê mais NÓS, vê-se um borrão da cor do primeiro giz de cera, e um papel em frangalhos, desmanchando, desunido pela água. Uma pomba da rua de Bauru vê a cena do barco molhado pela velocidade das memórias, percebe alguma coisa escrita nele, mas não sabe ler. Alça seu voo na direção contrária à correnteza, perde-se de vista pelo céu bauruense. O barquinho segue, passa pelo seu último quarteirão, memórias à frente, problemas atrás. Um bueiro, tão faminto quanto a enxurrada por coisas velhas e principalmente usadas, engole o barquinho.

Ilustração: Ana Zequin

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