A fábula nasceu assim: uma pequenina caracola, tremendamente tímida, esticava-se dia e dia e dia na Rua Batista de Carvalho: enfrentava o penoso trabalho de mascate, sina de família, tentando vender as roupas que seu pai costurava. Algodão, linho e cetim para todos os animais. Mas a caracola tinha uma questã: a sua vergonha. Quando conquistava cliente, quase vendendo a peça, assustava-se à beça com o acontecimento, e logo se recolhia para dentro da sua casa. Isso sempre. Era cliente abrir carteira, e a caracola se fechava, escondida na concha. Ninguém entendia. O hábito foi ganhando fama. Os clientes aumentavam — a curiosidade dos animais — e as vendas, nulas, não aconteciam. Ação gratuita. A molusca terrestre exausta, frustrava-se. E os cascalhos, a bufunfa, não entravam. Nunquinha. Deu-se o contrário em primavera. Num dia de estória de livro para gente grande. A caracola voltava para a casa do pai, atravessando o verde Parque Vitória Régia, quando um bem-te-vi, rasante, junto e paralelo, sussurrou um canto em seu ouvido. Sem tempo de assustar: no mesmo ímpeto — fúria e brio — uma flor em ato de balão despencou girando de grande árvore frondosa. Caiu delicada e exata em cima da caracola, tão frágil, sem produzir som, sem se desfazer. Sem tocá-la ou provocar feridas. Mas formou-se, das pétalas unidas, uma espécie de redoma, lona de circo. Circunstância. E a molusca se viu presa, sem conseguir sair de baixo da flor. Tudo escuro. Tudo aqui e agora. Nos primeiros dias, sozinha com a flor, permaneceu em silêncio. (…) Esperava que a vida, como trouxera o bem-te-vi e a flor, trouxesse a resposta do céu. Balela. A vida pedia amor e competência. O céu complacente. E eis que a caracola ouviu um Oi. Desarmou-se, e respondeu igualmente. Caracola, por que tanto se esconde?, disse a flor. Abalada, a molusca ficou novamente muda. (…) Eu já estive escondida, como você. Sei como um casulo é bom, é quentinho, confortável. Eu já fui semente! A caracola, mexendo os tentáculos, concordou. Mas florescer, aparecer, é tão importante… tão natural! Tão verdadeiro. Tão a gente! Tão nosso tempo. Tão tão tão… E daquele tantos tãos, as palavras soando o belo naquele escuro, faiscantes, a caracola foi se refazendo. Fazendo as pazes consigo mesma, com o seu breu, apaziguava a sua concha, chorava e sorria, servia a vida. Servia. E, finalmente, na medida do possível, foi pavio aceso naquele lampião de querosene. Flor, disse ela, prenda minha, eu concordo com você, meu limiar. Aparecer! Obrigada, caracola. Em tempo, vou me despedir e recomeçar. A gente aduba para a vida crescer e continuar, fazer e refazer! E aqui eu permaneço, flor, simples enquanto durar. Pólen. E foram, juntas, dias e noites, das primeiras brechas e frestas das pétalas, furadas de vento, chuva e raios de sol, a flor pouco a pouco foi sumindo, toco a toco desmontando, peça por peça, e a caracola compreendendo, o acordo de paz e beleza, amor e competência. E, aprendendo a conversar com a flor, a negociar o fim, o acontecimento, a respeitar o desfecho, o recomeço, a vida em metodologia, a caracola sustentou o susto, e esperou, esperou e esperou. Quando a flor já não era mais física nada, e também todo o ensinamento, a molusca despediu-se do Parque Vitória Régia e voltou para a casa. O pai — que rezou os seus sete dias de ausência — abraçou a filha e, sem mais delongas, guardaram as peças de roupa de mangas longas em suas conchas. Foram vendê-las na Batista. Um sucesso. A filha realizada, de suas aulas sobre o tempo, a conversa, as vendas, a vida. Amor e competência.
Depois, a fábubula ficou assim: de patas em patas, asas em asas, passavam as peças de roupa. E nenhuma venda. Pai, eu não consigo. E o alfaite rezava em voz alta enquanto costurava, ele ungia as roupas, eram tão abençoadas! Filha, você precisa tentar! Eu aposto que você vai conseguir. É preciso insistir, não baixar a guarda, a vida este espiral que atinge o seu ápice e se repete, eternamente, como a nossa concha, pede a nós a coragem. O seu isolamento — esta inércia — não te leva a nada. Não desfaz o labirinto. Não pula a amarelinha, não sobe ao céu. A caracola ouviu os conselhos do pai. E resolveu tentar mais uma vez. Sem sucesso, foi espairecer no Parque Vitória Régia. Quando cruzava um arabutã ou ibirapiranga ou ibirapitá ou ibirapitanga ou orabutã ou pau-de-tinta ou pau-pernambuco ou pau-rosado, um bem-te-vi gritou de longe para a caracola: cuidado! Começaram a chover várias flores amarelas do pau brasil, frondoso. Várias delas atingiram a molusca, e sob o impacto, dormiu em silêncio. Foi voltar a si já no hospital, assistida pelos pais, ao lado de uma flor enfermeira, sua companheira, do início ao fim da estada. Depois de algum merthiolate e colheradas de biotônico
fontoura, a caracola melhorou. Como bom caracol, que sempre gosta de alguma demora, demorando-se voltou para a casa. Revigorada, lembrou o pai, o bem-te-vi, as flores brasis e a flor de companhia. Sorriu… me dói meu pé, disse. Vida, vamos vender! E foi feliz. Motriz!
Hoje, a fábububula é assim: Flor, tudo que cai do céu é sagrado. Eu te acompanho, feliz, até o amanhecer.