Está para chover às duas horas da tarde bauruense. Bem à minha frente, a moça vai estacionar o carro. A vaga é espaçosa e ela começa a manobrar. Sentado a poucos metros dali, tomo meu café numa posição cujo enquadramento visual não me deixa alternativa: estou olhando diretamente para a cena. Ela já foi para frente e para trás umas duas ou três vezes e o resultado ainda é insatisfatório. O carro teima com sua condutora, não endireito e não endireito, mesmo! Quando, num tranco, o motor afoga pela primeira vez, sinto um terrível desconforto acompanhado da necessidade urgente de desviar os olhos. Para qualquer direção. Na mesa ao lado, dois sujeitos param de falar sobre a volta dos buracos no asfalto e a pouca vergonha dos políticos, e começam a rir com ironia. Um deles olha para mim sugerindo uma cumplicidade, pode isso, companheiro? Mas faço que não captei a mensagem subliminar. Viro o pescoço à direita. Na esquina, um homem grande com tatuagem no braço e cabelo tipo Neymar pede esmola a uma velhinha. A moça deu partida outra vez e agora se contorce ao volante para dar sentido à sua causa. Tomo o último gole do café, os dois da mesa ao lado abandonaram definitivamente os buracos das ruas, os políticos e a morte da bezerra, estão estupefatos, observam acintosamente o drama no meio-fio. Começo a torcer loucamente para que a moça dê uma ré com a direção virada à esquerda. Isso endireitaria a dianteira do carro. Depois, restaria apenas virar à direita, engatar primeira e tocar um pouquinho para frente. Fim. O mundo voltaria a girar normalmente. Eu poderia também endireitar o pescoço. Mas não. Ela insiste em manobrar de um modo parecido com esses vídeos que botam na internet para tirar sarro das mulheres. A operação não evolui. Começa a chover. Por um instante ela suspende a manobra para apertar o botão que ergue os vidros. Também liga o limpador do para-brisa. Na esquina, a velhinha já abriu a bolsa e deu uma nota ao pedinte tatuado, forte e cheio de ginga. A velhinha corre para debaixo de um toldo e o tatuado segue na chuva. Por fim, a moça desiste da tentativa de endireitar o carro. Desliga. A frente fica a meio metro da calçada, mas a traseira… Ela desce. Quando mal ou bem, a aflição parece ter chegado ao fim, um dos clientes da mesa ao lado diz dona, dona, o pneu tá furado. E está mesmo! É o traseiro direito. Ela olha. Obrigada. Arruma a bolsa no ombro, encaixa uma pasta embaixo do braço e abre a sombrinha. Pronto. Debaixo da garoa, equilibrando-se sobre o salto alto e agarrada à parafernália que as mulheres costumam carregar consigo, ela começa a caminhar pela calçada úmida. Os caras da mesa ao lado apagaram o escárnio do rosto e um deles, o que alertou sobre o pneu furado, faz um movimento para avisar que o vidro do lado do passageiro não está totalmente fechado, mas em seguida deixa o braço cair sem dizer palavra. Os dois estão boquiabertos com a classe da moça ao desfilar à nossa frente. A tarde para. Ela passa. Uma onda silenciosa se expande a partir de seu corpo bem desenhado e de seus gestos sutis. E o carro, torto e sem jeito, parece envergonhado com sua besta sacanagem.
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