“Ah! Eu sou um jazzista mesmo”. É assim que Luiz Manaia (55) se apresenta durante nosso encontro na sua casa, na Vila Ipiranga, em Bauru. Mas ele não precisa. O portão azul do local não faz mistérios: tem uma bateria esculpida logo na entrada. É como se o portão, aquela grande chapa de metal, dissesse para qualquer um que passasse na rua: “Aqui mora um baterista”. Mas não só. “Aqui mora um baterista e é um baterista de jazz, um jazzista!”. Isso porque em cima da bateria está escrito “Jazz” com belas letras cursivas de metais.

“O cara que veio fazer o portão descobriu que eu era baterista. Ai ele me falou ‘Vou fazer um negócio pra você! Me manda umas fotos de bateria’. E eu mandei, mas pensei que ele não ia fazer nada. E não é que no outro dia o cara apareceu aqui para instalar o portão com isso? Eu fiquei ‘Cara… e não é que você fez mesmo? Você é um artista, bicho! [risos]”, narra Luiz enquanto me dá tchau depois de uma longa conversa onde me contou como passou de Luiz para Ralinho, o início na bateria, a descoberta do jazz e como adaptou o instrumento de percussão para tocar sem uma perna. 

Por cima do muro na Antônio Alves, o convite à bateria

O ano era 1978. Luiz tinha 10 anos e ainda nem sonhava em ganhar o apelido ‘Ralinho’, como é conhecido hoje pelas noites. Na escola, durante as aulas de educação artística, aprendeu a fazer um “instrumento” com garrafas de vidro. Cada uma tinha uma quantia de água e elas eram penduradas em um varal. A cada batida, um som diferente.

Com a brincadeira, o quintal da casa na rua Antônio Alves, onde ele morava, escutava som desordenado há semanas. Os batuques eram tantos que chamaram a atenção do ouvido aguçado do vizinho. O vizinho era Paulo Saca, baterista e então integrante da banda bauruense Século XX, que alugava a casa ao lado para realizar ensaios.

“Ele chegou por cima do muro e falou: ‘Meu! Cê não quer aprender a tocar bateria?’ Eu disse que sim e ele me levou pra casa deles, onde eles ensaiavam”, conta Ralinho. “Nossa! Na hora que eu vi toda aquela parafernalha arrumada e os caras ensaiando, eu pensei: ‘Meu Deus! Acho que é isso o que eu quero!’ E aí eu comecei a estudar com ele”, completa enquanto gesticula uma bateria com as mãos.

Ralinho não fez conservatório, tampouco frequentou universidades. Aprendeu tudo o que sabe com Paulo, que ensinou o caminho das pedras, e com a vida de músico. Tirou a primeira carteira da Ordem dos Músicos do Brasil em 1984. Tornou-se baterista profissional ao viajar o país com bandas para tocar em festas e bailes (Ah! Os bailes!) em uma época em que faziam parte da vida social brasileira. Uma dessas bandas era a Estilo A, aqui de Bauru. Segundo Ralinho, essa foi a maior escola.

“Músicos que tiveram a oportunidade de passar por bandas de baile são músicos diferenciados. Porque tem uma diferença entre estudar técnica e colocar em prática. O baile te dá uma prática que nada te dá igual. Nenhuma escola vai te ensinar o que o baile te ensinava, porque eram 60 a 80 músicas que tinham que estar na sua cabeça de alguma forma. A gente tocava de tudo: boleros, samba, Jovem Guarda, músicas românticas para o pessoal tirar as damas para dançar, pop e rock. Eram os anos 80”, lembra.

Ainda naquela década, virou músico da Scaramouche, então bar de quintal na rua Sete de Setembro. Por lá, ganhou o apelido que leva hoje. Na época, andava de moto e se machucava muito. “Mais um ralo, Ralo?”, questionava o dono do bar, Celso Câmara. Assim Luiz virou Ralo, que em decorrência da estatura passou a ser o Ralinho.

E foi nessa simbiose musical entre baterista e baile que o bauruense conheceu o jazz e integrou a primeira banda do tipo: Sindicato do Jazz. 1990. Ralinho e mais quatro amigos faziam parte do grupo, incluindo Derico, antigo saxofonista do Jô. Ao longo de  18 anos de existência, o grupo levou o jazz para cidades grandes, pequenas, praças públicas e festivais nacionais e internacionais.

Posteriormente, em 1993, Ralinho recebeu convite do maestro Bade, músico de Bauru, para integrar a Bauru Jazz Band, onde ficou até 1998. Na imagem acima integrantes da Bauru Jazz Band (Foto: arquivo pessoal)

Ralinho e o jazz

Antes do jazz chegar ao Brasil, mais especificamente aos ouvidos de Ralinho, ele nasce no sul dos Estados Unidos por volta de 1920 pelas mãos e vivências de pessoas pretas escravizadas. Era música como forma de resistência – e revolução – social. Caminhando lado a lado com o blues, o jazz ganhou clubes e bares, a começar por Nova Orleans, e popularizou-se. Louis Armstrong, Miles Davis e Charlie Parker são alguns dos grandes nomes do gênero.

As vertentes do ritmo brotaram na efervescência urbana: Dixieland, Swing, Cool Jazz e tantas outras. Todavia, foi o Bebop que ganhou o coração de Ralinho. O estilo se caracteriza por ser tocado com uma velocidade maior, ter uma harmonia avançada (comparada aos estilos anteriores) e, claro, improvisos e solos mais arriscados. É considerado o jazz como forma de arte. 

Não à toa, Ralinho faz jus ao estilo. Após apresentações, é comum escutar relatos como: “Depois que vi um solo dele, passei a repensar a bateria como instrumento no jazz. Foi o melhor solo de bateria que já vi”, afirma um dos espectadores da primeira edição do Bauru Jazz Festival.

“É um jazz com mais notas, com mais liberdade de poder fazer o que quiser. Esse é o Bebop, um jazz mais nervoso e com muita questão social”, apresenta o músico orgulhoso enquanto toca o estilo no quarto no fundo da própria casa, onde tem milhares de discos de vinil, fitas, CDs, aparelhos de som e, claro, uma bateria. Trata-se de uma Slingerland, feita em Chicago em 1960 e considerada um “modelo raro” pelo músico. 

“Essa daqui só sai em ocasiões especiais”, conta Ralinho sobre  o instrumento, que tem acabamento perolado branco. O Bauru Jazz Festival foi uma dessas ocasiões. Mas não foi com essa bateria que o conheci. A primeira vez que o vi tocar foi com a “bateria de guerra”, que ele leva para cima e para baixo pelas noites bauruenses. É a Pinguim (Sim, igual ao nome da ave que nada).

Bateria slingerland, a preferida do músico

“As duas baterias são da mesma época [1960], porque eu gosto de bateria retrô. Elas têm um som mais mais jazzístico”, explica a preferência.

Ambas seguem o padrão tradicional: bateria de um tom com dois ou três pratos, porque, como ele mesmo pontua: “o baterista é o primeiro a chegar e o último a sair [risos]. Se você tiver alguém pra montar, desmontar e carregar, é uma delícia. Se você não tem, é melhor você simplificar, por isso deixo ela bem tradicional, bem prática”.

Seja com uma ou com outra, o bauruense integra diversos projetos atualmente, como Doce Vampiro (tributo à Rita Lee), Eclipse Oculto (tributo a Caetano Veloso), Frenetic Soul,  Clube do Jazz (antigo Sindicato do Jazz) e a Raloz Jazz, banda de Bebop que estampa a pele do bumbo da bateria favorita do músico.

Quando questionado sobre referências de baterista, Ralinho nem pensa. Me saca Buddy Rich, Art Blakey, Edson Machado e Milton Banana. Esses dois últimos, brasileiros, são considerados “bateristas de cabeceira” pelo bauruense. “Acho que todo baterista tem que estudá-los”, justifica. 

Trabalhos de Ralinho

Bateria se toca com mãos, ombro, pé e vontade

Quem vê Ralinho tocar, fica admirado. Admirado pelo som ao ponto de, muitas vezes, nem perceber que o baterista não tem a perna esquerda. “Muita gente se assusta, às vezes me vê tocando e nem percebe. Aí na hora que eu saio que a pessoa vê e fala: ‘Caramba! Tocando desse jeito!’ ou muitas vezes eu chego para tocar ou passar o som e o pessoal pergunta: ‘Quem é o baterista?’. Perguntaram para mim. Sou eu! [risos]”, conta. 

O bauruense nasceu com displasia que afetou o desenvolvimento da perna esquerda. Fez inúmeras cirurgias corretivas. Mas, com oito anos, amputou a perna até um pouco acima do joelho. Para aprender a tocar o instrumento, ainda na infância, adaptou a prótese com o pedal do chimbal (conjunto de dois pratos à esquerda na bateria). 

Adaptação que Ralinho utiliza para tocar bateria

Porém, em 1992, o músico teve tumor no coto e passou por re-amputação. A ação impossibilitou o uso de prótese e, como consequência, teve que parar de tocar bateria. De acordo com ele, essa foi uma das maiores dificuldades que já passou na vida.

“Fiquei um ano sem tocar para me restabelecer e pensando que eu ia fazer da vida. F****. Não dava para fazer nada e eu precisava de um emprego. Até que um dia, peguei a muleta e apertei o pedal do chimbal com ela e senti que dava para fazer alguma coisa. Então, peguei aquela adaptação, tirei a base que eu tinha feito para o coto e subi até o ombro. Ela encaixa no meu ombro e no pedal do chimbal. Com a adaptação, o que me restava era estudar coordenação. É a mesma coisa de você tocar com o pé, só que tu vai ter que estudar com o ombro. Deu certo. Foi a minha salvação”, informa. 

Ralinho toca o chimbal com o ombro esquerdo. Com a mão, segura as baquetas numa “tradicional grip”. Assim segue durante seus mais de 40 anos de carreira e pretende ficar até não conseguir mais tocar. “Foi que aconteceu! 40 anos de música é muita coisa e pretendo tocar até poder. Se alguém tem LER [Lesão do Esforço Repetitivo], se aposenta. O músico não. Ele tem LER, está com a mão toda estropiada e vai lá, não quer se aposentar. Então, eu acho que é o meu caso, vou estar todo estropiado, mas vou tocar até o fim da vida. Música não tem aposentadoria. Tenho 55 e ainda tenho um bom caldo pra tomar”, finaliza. E que bom. A gente agradece, Ralinho!

 

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