Cidade que já foi capital do Império, recebeu a Família Real Portuguesa, foi a primeira capital da antiga república e hoje é dominada pelo tráfico, pela milícia e por “contraventores” que mantêm o legado do Jogo do Bicho. Esse é o Rio de Janeiro.

Primeiro texto da coluna do ano é sobre a nova sensação do streaming brasileiro, que contextualiza a história recente da cidade maravilhosa, historicamente dominada por facções, que perdura até hoje. Com uma narrativa que começa com relatos históricos, passando pelas principais cabeças do negócio, até sua profissionalização nos anos 80. Com relatos das pessoas que fazem parte (e que estão vivas hoje, claro) a série cruza com fatos e matérias jornalísticas da época. É um prato cheio para quem busca passar o tempo com uma história incrível e cruel.

A história narra as origens do Jogo do Bicho no Brasil e seu desenvolvimento em território nacional, especialmente no Rio de Janeiro, onde o submundo do jogo de azar envolveu (e ainda envolve), por exemplo, famílias influentes, brigas internas por poder, fraudes, traições, prisões, vinganças e até assassinatos. O documentário é dividido em 7 episódios, cada qual com cerca de 60 minutos de duração.

De forma didática e com uma linha do tempo, a narrativa se aprofunda nas razões e consequências. Da ascenção até o legado, da contravenção até o crime de assassinato. Quase um enredo de O Poderoso Chefão, famílias que estão acima da lei e da ordem. Os principais nomes são: 

  • Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães

Capitão do Exército, o carioca Ailton Guimarães Jorge, foi o grande responsável, ao lado de Castor de Andrade, pela criação ‘oficial’ da cúpula do bicho no Rio e do trabalho de ‘delimitação pacífica’ do território de cada um deles.

  • Castor de Andrade

Filho e neto de bicheiros, Doutor Castor construiu um império em meio aos patrocínios no samba e futebol, assistencialismo e muito, muito tiro e morte. Seu negócio era o jogo-do-bicho, o futebol, a escola-de-samba, a contravenção. Foi presidente do Bangu Futebol Clube. Na verdade, dono. Comprava jogadores, vendia, escalava o time e até entrava no campo para defendê-lo de arma na mão, como fez certa vez num jogo contra o América, em pleno Maracanã.

  • Anísio

Bicheiro, contraventor e presidente de honra da escola de samba Beija-Flor.

  • Rogério de Andrade

Sobrinho do bicheiro Castor de Andrade – que fez fama e fortuna por meio da contravenção na década de 1980/1990 no Rio de Janeiro – , Rogério Andrade seguiu o legado do contraventor. E hoje, é de longe o homem mais poderoso do meio. Soube ampliar os negócios e acumulou fortunas. É temido pelos rivais e se projeta como uma das personalidades mais poderosas do Rio de Janeiro.

  • Shanna Garcia

Uma das únicas mulheres a comandar o jogo do bicho, era filha de Maninho. Vista como a pessoa ideal para seguir os negócios do pai no bicho, casou-se com Zé Personal, que trabalhava com exercícios e tinha relação com Maninho. O marido assumiu parte dos negócios após a morte do bicheiro.

A série vai destrinchando episódio por episódio a relação das famílias e seus conflitos, a maneira como o dinheiro subjuga caráter e quebra de confianças são expostas. Da crueldade e falta de sensibilidade que o dinheiro (muito dinheiro) pode afetar uma família.

A narrativa da série utiliza de um recurso visual bem interessante, assim como nos filmes de investigação, uma parede com todas as fotos são expostas. Nela, através de um fluxograma e com o simbolismo de uma árvore genealógica, fica claro para o telespectador os personagens, ou melhor, as pessoas que fazem parte desta história. Separados por famílias e ela vai crescendo, conforme os filhos aparecem, namorados, genros e cunhados. E para cada consequência, ou morte, eles vão caindo… no final da temporada é chocante a mudança de cenário.

Os depoimentos são chocantes, a naturalidade que eles falam sobre o assunto é bizarra e incomoda, não apenas por eles, mas jornalistas, policiais e delegados. A contravenção é algo tão natural que ninguém ali parece se incomodar com o fato de estarem lidando com um crime organizado. Aliás, muito bem organizado.

O que esperar do futuro é assustador, os velhos (literalmente) bicheiros estão saindo de cena, e se questiona a capacidade de seus filhos manterem os negócios vivos. A sensação que fica é que existe uma paz temporária e silenciosa, que ao final do último suspiro da velha guarda, tende a explodir. Uma geração despreparada e imatura pode assumir os negócios, e dado ao próprio depoimento do Milton Cunha (Carnavalesco e cenógrafo) eles nunca terão o mesmo respeito que seus pais tinham. E isso é um problema…

É incrível como a gente busca o tempo todo em conteúdos da ficção histórias que podem nos entreter, mas por muitas vezes, a realidade é tão chocante que vale a pena entender como funciona e atiça nossa curiosidade. O documentário, ou série, vale como uma aula de história na prática, de entender como a cidade mais representativa (turismo e cultura pop) do Brasil é um caos atual. A impunidade e a falta de estado criou brechas para nossos players que tomaram regiões e as leis, igual a máfia. Pode-se dizer que a relação dos bicheiros é como uma máfia.

Ah, se tem uma coisa que esses bicheiros foram espertos, é o marketing pessoal que eles criaram para si. Se associar ao Carnaval carioca e patrocinar as escolas de samba é um ato genial (temos que reconhecer) para limpar sua imagem perante a sociedade, isso o fez entrar em ambientes de elite e serem tratados como reis. 

Nada muito diferente do que muitos sheiks árabes fazem no futebol europeu atualmente. O que seria da Premier League se não fosse o investimento do dinheiro árabé por lá. O QUE SERIA DO CARNAVAL carioca sem o investimento do jogo do bicho. “Uma mão lava a outra”. 

Segunda temporada?

Com o sucesso, foi anunciado que terá segunda temporada em 2025. A próxima temporada deverá seguir mostrando outras famílias envolvidas com a contravenção e apresentando novos personagens que rodeiam esse submundo. Até porque alguns nomes estão atuando até hoje e são projetados para o futuro.

Série documental de true crime tem sido tendências para muitos streamings, isso ajuda a aumentar seu catálogo e atrai a atenção de um grande público. Só temos que tomar muito cuidado para não dar holofotes para pessoas e situações erradas. Por outro lado, procurar entender que essas histórias completam e nos ajuda a entender o Brasil que vivemos, e é essencial para uma nova análise para quem sabe, um futuro promissor.  Se vale o que está escrito, vamos escrever um futuro promissor que vale a pena tentar.

Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho, 2023

Veredito: 5/5

Onde assistir: Globoplay

Temporadas: 1

Produtores: apresentado por Pedro Bial e os diretores Fellipe Awi e Ricardo Calil. Erick Brêtas e Mariano Boni na produção.

Avaliação IMDB: 8,7/10

https://www.youtube.com/watch?v=aL4KpOGjiw0

Confira mais textos do colunista: www.socialbauru.com.br/author/gabrielcandido

Compartilhe!
  • Bauru de meu pai 

    Meu Deus, eu não consigo… Não. É impossível. É transcendental. É viagem. O sonho meu…
  • Fallout

    Seguindo uma tendência atual, adaptações de jogos tem sido o grande destaque dos estúdios …
  • Eu vim de Bauru mas eu volto pra lá

    Eu estou voltando, confirmo sim, mesmo quando viajo para longe, quando estou a quatrocento…
Carregar mais em Colunistas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também

Bauru de meu pai 

Meu Deus, eu não consigo… Não. É impossível. É transcendental. É viagem. O sonho meu…