Nem só de sanduíche vive uma cidade. Requer arte, cultura, política e tradição. Assim, num hiato entre o futuro e o pretérito, o cavalo troteia a carroça na rua de paralelepípedos manca. Ruas íngremes acolhem, ainda em seu DNA, casas com muros baixos, com fachadas arredondadas, habitadas por quem acompanha o desenvolvimento da cidade aos olhos de sua mais bela vista.

O sorveteiro passa com sua buzina. O caminhão do gás tosse de fumaça na subida. O cão cochila o sono das 10 horas no meio da rua Vitória. É madrugada. Latidos de recusa anunciam a montagem da feira na Silva Jardim. Figos com mel e queijo de cabra, bolo de fubá com abóbora, bananada com cravo e canela, broa de milho com goiabada cascão, cocada de pinhão, curau de milho, pastel de tapioca, bombocado de mandioca, marmelada de laranja, café da roça com pingado fresco. Deus meu! Erasmo Carlos tem razão. Tudo o que é gostoso, ou é imoral, ilegal ou engorda. Na marmitaria principal do bairro, a fome mastiga o cardápio caseiro. Sopa de fubá com couve, arroz com mandioca, feijão preto com linguiça no frango com quiabo.

Um casal bem velhinho atrai o vizinho a colecionar conversas roucas na calçada, espantando a solidão morna das árvores. O dia envelhecia de vez, quando as mães gritavam para os seus filhos se despedirem das brincadeiras da rua, levados pela disciplina do banho. A noite acenava ao dia. Missa das 19h30. Ao segredos, ao sagrado sacramentado, os fiéis rumam à igreja Santo Antônio – creio em Deus pai todo-poderoso, criador do céu e da terra. Carros enfileiram-se na rua Carlos Marques. Outros, a pé, carregam sua fé suada e pontual. O ônibus em seu ponto, final.

Vista aérea do bairro Jardim Bela Vista (Foto: Biblioteca IBGE)

Um azul em abuso de admiração imprime ao céu do bairro superlativos. Na maioria das casas, as garagens ostentam samambaias, rendas portuguesas, lírios, igualmente a uma pintura a emoldurar o verde aconchegante. O comércio, aos poucos, soma-se ao quarteirão, antes, residencial. A arquitetura completa de belo o que já contempla nossa vista. Assim é a Bela Vista. O bairro é comprometido com a felicidade, com miudezas práticas. Moradores cultivam vizinhos. Vizinhos cultivam o bom relacionamento com zelo acolhedor, tal qual a orquídea que ao pedir à árvore para alugar um pedaço em seu tronco, paga-lhe em beleza desfolhável.

A senhora de roupão com birote é uma viúva esquecida de viver, pedaço de carvão inútil como brasa apagada de chuva. Todo o dia, ela varre a calçada, varre a calçada, varre a calçada. Da última vez que a vi, ela me relatou ter aprendido a conviver com o luto, com a sabedoria das folhas de outono, que aprendem a cair sem alardes.

Cenas como essas cheiram a afeto colhido, tal qual café feito na hora. Igualmente às roupas encabidadas no guarda-roupa são as nossas memórias. Elegemos o que vestir, resgatando o que de bom está e ficou em nós. Dia desses, um passado infantil me visitou. Bela Vista me convocou a visitá-la. Tentei ignorá-la, descumpri-la. Aprendi, com a força da saudade, a importância da obediência.

Esta foi a estreia de Alexandre Benegas como colunista no Social Bauru, confira outras colunas aqui.

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