Há 60 anos, a Universidade de São Paulo (USP) chegava a Bauru com a Faculdade de Odontologia. Além das aulas, a instituição também possibilitou o atendimento à população, antes inexistente por aqui. Entre os pacientes que procuravam o serviço, estavam pessoas com fissuras labiopalatinas.
Por isso, os pesquisadores buscaram ir além dos atendimentos odontológicos e passaram a fazer estudos também na área dessas lesões para ajudar na reabilitação.
Em 24 de junho de 1967 surgiu o Centro de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais, apelidado pela população de “Centrinho”. O local foi fundado por sete professores doutores da USP, e é considerado um pioneiro nesse tipo de tratamento no Brasil. Até hoje dedica 100% de sua capacidade a usuários do Sistema Único de Saúde.
Desde então, o Centrinho já ultrapassou a marca de 100 mil pessoas atendidas. Além disso, nesses mais de 50 anos de história, a instituição se tornou reconhecida no mundo, considerando a contribuição científica, o atendimento médico e a diferença que fez na vida dos pacientes.
Foto: Cecília Bastos/ USP Imagens
Hospital de referência
A transformação do grupo de pesquisa em hospital aconteceu em março de 1976. O governador Paulo Egydio Martins criou o Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais (HPRLLP), vinculado diretamente à reitoria da universidade.
O Centrinho foi o primeiro hospital conveniado com órgãos públicos de saúde, e tinha por objetivo oferecer atendimento universal e gratuito na área de fissuras labiopalatinas.
Foto: Assessoria de Imprensa/HRAC
Como o Brasil apresentava insuficiência deste tipo de atendimento, cada vez mais pessoas de todos os cantos do país passaram a vir para Bauru procurando pelo Centrinho. Além das lesões labiopalatinas, os profissionais começaram a atender também outras malformações craniofaciais.
Em 1981 foi realizado o Censo das Pessoas Deficientes em Bauru, que também indicava carência de atendimento para essa população. Quatro anos depois, em 1985, o Centrinho começou a fazer atendimentos na área de deficiência auditiva em parceria com alunos de fonoaudiologia da então Universidade do Sagrado Coração (USC), hoje Unisagrado.
Em 1998, o hospital recebeu uma nova denominação e se tornou o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC-USP), devido à ampliação do seu campo de atividade. Desde então, tornou-se pioneiro em tratamentos e cirurgias, como:
- Primeira cirurgia ortognática em paciente fissurado no Brasil (1978)
- Primeiro implante osteointegrado intraoral para tratamento da fissura labiopalatina (1989)
- Primeira cirurgia de implante coclear multicanal do Brasil (1990)
- Início do uso de proteínas morfogenéticas ósseas em cirurgias de enxerto ósseo (2010)
- Início do uso de próteses auditivas cirurgicamente implantáveis de orelha média – inédito no Brasil (2012)
- Início do uso de novas próteses auditivas implantadas cirurgicamente ancoradas no osso (2014)
Desde o segundo semestre deste ano, o hospital foi desvinculado da USP e passou a ser parte do Hospital das Clínicas de Bauru.
Histórias do Centrinho
Mais do celebrar as conquistas acadêmicas do Centrinho, conhecer famílias que precisam do hospital também ajuda a entender a relevância do local. Algumas dessas histórias estão relatadas na página ‘Centrinho é USP’, criada por estudantes de pós-graduação do hospital. Do mesmo modo, é também um espaço para entender o trabalho realizado pela instituição, que recebe pacientes de todo o Brasil.
“O intuito [da página] é mostrar o trabalho sensacional realizado pelo hospital, com histórias reais e como a reabilitação muda a vida dos pacientes”, explica João Gabriel Rando Poiani, pós-graduando atuante no local.
Dessa forma, o Centrinho é uma mistura da especialização em saúde com o apuro dos profissionais. Para Poiani, três palavras definem o local: esperança, pelo futuro permitido pelos tratamentos, competência, especialmente por ser uma instituição de referência no Brasil, e acolhimento.
“Acolhimento em cada paciente daqui, cuja maioria começa bebê e é atendido a vida inteira. Todo profissional conhece a história de cada paciente e os acolhe de forma empática, se colocando verdadeiramente no lugar deles, com muito carinho no tratamento”, garante o estudante.
São três palavras para resumir a qualidade do Centrinho, e que, nas conversas com famílias que passaram pelo local, é possível entender que realmente funciona na prática.
Suellen e Giovana Santiago
Suellen Rocha mudou para Bauru por causa do Centrinho. Mãe de Giovana Santiago, hoje 10 anos, ela saiu de Cataguases-MG para cuidar da deficiência auditiva da filha, descoberta aos 8 meses. Foi a falta de interação da bebê com as pessoas que fez a mãe pedir exames e ter o diagnóstico.
Foto: Acervo Pessoal
“Lá [em Cataguases] não tinha tratamento adequado. Então, eu e meu ex-marido, o pai dela, viemos em busca do melhor [hospital] e viemos para Bauru com ela e meus três filhos. Mudamos completamente a nossa vida para o tratamento”, conta Suellen.
A mudança aconteceu em 2014, após ela descobrir que o Centrinho é uma referência na América Latina. Segundo conta, tudo o que ouviu de bom sobre o local fazia sentido. “Quando eu cheguei no Centrinho, eu fiquei apaixonada”, enfatiza. “É um zelo não só com o paciente, mas também com os pais. Lidar com isso mexe conosco, e o Centrinho nos acolhe. Dá uma força”.
O local é importante para pacientes como a Giovana – com implante bilateral, ela será uma paciente “a vida inteira”, já que o aparelho sempre precisará de manutenção – e também para Suellen. Isso porque, no Centrinho, ela encontrou outras mães do Brasil inteiro com quem compartilhava o amor por uma criança com deficiência.
Suellen, que no início do ano fez parte de um grupo que organizou uma petição para defender a qualidade do Centrinho pela ligação à USP, não cansa de destacar a importância do hospital na vida dela. “Minha filha não falava uma palavra, e hoje ela me escuta! Eu não imagino como seria a minha vida e a da minha filha se eu não tivesse encontrado o Centrinho”, diz ela.
Andreia e Gabriel Strinta
Outra história de conexão com Bauru a partir do Centrinho é de Andreia Strinta, de Cascavel-PR, mãe de Gabriel Amadeu Strinta, diagnosticado com Síndrome de Treacher Collins e hoje com 13 anos. A partir da descoberta da patologia pelo Centrinho, quando o filho tinha apenas 45 dias de vida, Andreia viveu uma história de “alegria, tristezas, vitórias e lutas”, como define.
Foto: Acervo Pessoal
Dessa forma, logo nos primeiros dias de vida de Gabriel, ela começou uma relação de afeto com o Centrinho. “Foi quando nós nos sentimos acolhidos e compreendidos”, comenta, considerando como o filho está em constante contato com o hospital.
Desde os primeiros meses de vida, ele vai e volta do hospital em Bauru, incluindo internações ainda bebê, respiração por traqueostomia e uso de sonda por sete anos. No total, foram mais de 20 procedimentos cirúrgicos na face, além do acompanhamento médico.
Foi o Centrinho que deu qualidade de vida ao Gabriel, comenta a mãe. “Para nós, [o Centrinho] foi um presente de Deus. Deus nos deu o Gabriel e também esse hospital que presta um serviço excelente”.
Foto: Acervo Pessoal
Por isso, Bauru virou a segunda casa da família, considerando que ela já passou meses aqui com o filho. Para Andreia, a principal qualidade do Centrinho é ter uma equipe de médicos que consegue dar um olhar global aos pacientes.
Inclui também o profissionalismo, dedicação e o amor dos profissionais do hospital. “É um sentimento de gratidão, de amor mesmo. O Centrinho faz parte da nossa história, é como se fosse da nossa família”, finaliza ela, com a seguinte constatação: “É o melhor lugar do mundo”.
Essa percepção está nas próprias palavras do Gabriel: “Oi, eu sou Gabriel, o Centrinho é muito importante para mim, porque ele faz parte da minha vida. Quando eu nasci, eu fiquei seis meses internado lá. E não é só isso, tipo, não é só por causa disso que ele é muito importante. Também porque boa parte dos das pessoas que me ajudaram, que me recuperaram com as cirurgias, estão lá! Eu sou muito grato a todas elas, por cuidarem tão bem de mim. Eu também gosto muito de lá por causa da comida, que é muito boa. E também gosto de ir lá, porque é um lugar agradável de se estar, por causa de todos aqueles médicos e doutores cientistas”.
Christiane e Iarley Bermudes
É dessa forma que o Centrinho muda a vida das pessoas, possibilitando qualidade de vida. Um dos exemplos mais conhecidos é de Iarley Bermudes. Hoje com 15 anos, ele e a mãe, Christiane Bermudes, conhecem o hospital há muito tempo.
Foto: Acervo Pessoal
Desde os seis meses de gestação, ela sabia que o filho nasceria com lábio leporino, mas não imaginava o tipo de fissura. Após indicação da tia, Christiane trouxe o Iarley para o Centrinho. Por aqui, foram 18 cirurgias reparadoras.
“A cada três meses, estava em Bauru”, comenta, falando do amor pela cidade e pela instituição. “Quando relembro do meu filho na UTI há 15 anos, e vejo hoje ele se tornando um adolescente tão inteligente e ajudando tantas pessoas, dou graças ao Centrinho e aos profissionais. O Centrinho é vida”, afirma.
Por lá, além de cuidar da saúde, Iarley também encontrou uma vocação quando, aos 9 anos, virou youtuber e ficou conhecido por falar sobre bullying e cyberbullying. Nesse sentido, ele faz vídeos, entrevistas, palestras e tem Instagram com mais de 23 mil seguidores.
Foto: Acervo Pessoal
Ou seja, a partir do trabalho do hospital, Bermudes se sentiu seguro para incentivar o respeito e oferecer motivação e autoestima para os jovens. “Foi graças ao Centrinho que Iarley pôde conversar melhor com a fonoaudiologia e os demais acompanhamentos”, resume a mãe.
E claro, entre as pautas dele, não podem faltar os elogios ao Centrinho. “Não é apenas um hospital, é a casa de milhares de fissurados. Um local com atendimento humano, onde as pessoas são gentis e carinhosas, e os médicos nos tratam com muito amor. O Centrinho é a esperança de uma recuperação, além de ser um porto seguro para uma recuperação plena”, finaliza Iarley.
Foto: Acervo Pessoal
Texto de abertura de Letícia Pinho