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Nauru ou Bauru

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Não, ne, ní, nie, niet, nicht, no, non, not. Foi em um domingo normal, após o almoço de macarronada completa e limonada. Todos nos reunimos em frente à televisão para assistir a um filme cujo título não me recordo, um nome espanhol interessante que rimava com “manca”.

Espremidos no sofá, algo não me deixava estar ali por completo, algo me chamava e me dividia, algo me queria, algo queria desesperar o domingo normal. Algo me levou ao quartinho dos fundos. Levantei e deixei o filme de lado. No quartinho com cheiro de mofo, o quartinho dos fungos, agachei e retirei uma caixa de papelão da estante de livros. Na caixa, um primeiro jornal estampava: Bauru, maio de 1968. Tateei com os olhos a primeira folha e um tópico foi ensurdecedor: Nauru.

Particularmente, nunca tinha lido a palavra Nauru. Erro de palavra? Parecia um erro de digitação, alguém poderia ter batido errado, dada a proximidade na máquina entre as letras B e N. Mas a palavra Nauru aparecia divertidas vezes no excerto do jornal. Anunciava o seguinte trecho: “O fim de Nauru: após meses de negociação, comunidade fundada por nauruenses é banida da cidade, após pressão da população e ordens da prefeitura. O nome Nauru está proibido de ser veiculado, e esta é a última vez que será mencionado neste jornal. Nauru entra para a história da cidade como o bairro que não quis ser bairro. Quis ser uma ilha imaginária”.

O texto. Eu li e não li. Fiquei tão feliz que fingi não ter lido. Lia, fingia e relia. E a minha felicidade se alternava entre leitura, esquecimento e descoberta. Ali foram 5 minutos daquela tarde. Tarde boa… o trecho terminava assinado pelo jornalista Nairon X. Quem era este senhor, eu não fazia a menor ideia. Mas meu avô chama Nairon.

Voltei ao filme de nome espanhol, e na televisão um casal dançava uma música lenta e meu vô babava, acho que estava no quinto sono. Talvez sonhasse que estava dançando também. E no compasso dessa dança, meu vô dormindo parecia beijar o ar, fazia biquinho. Estaria sonhando com o seu primeiro beijo na adolescência? Um romance espanhol.

Achei a cena intrigante. Um casal de dançarinos da TV assistindo ao meu vô fazer biquinho. Esse movimento dos lábios dele não era um simples beijo, parecia… que a boca pronunciava algum tipo de palavra? Parei para reparar: meu vô dormia e dizia bauru, bauru, bauru. Não estou maluco, passo bem. A quem lê este texto, não resumo a história a uma insanidade. Juro que vi. “Bauru” estava na pronúncia, sem som, mas pronunciada.

O velho acordou. Abriu os olhos, olhou para mim e para os dançarinos. Assustado. Vô, que história é essa de Nauru? Ele respondeu com uma cara de interrogação. Mostrei o jornal de 68. Olha, Sinuhezinho, tenho duas versões dessa história para te contar: uma que eu amo, e outra que eu detesto. Por qual eu começo?

Abaixo transcrevo, literalmente, as duas versões que meu avô me contou. Literalmente porque o velho se recusou a falar, ele quis escrever. Eu insisti que poderia gravar com o celular mas ele foi teimoso. Pois bem, fiquem com o texto. Por via das dúvidas, não irei apontar qual versão é qual, apontar é resumir, e de resumos, basta o dicionário.

Versão 1: Nauru me ocorreu quando meu pai entrou no meu quarto e disse: filho, junte suas coisas, vamos embora daqui. Um bando de baderneiros está tomando o bairro, vão invadir a nossa casa. Eu acordei assustado, fiquei morrendo de medo. A primeira coisa que fiz foi sair para a calçada: deparei-me com gente junta e agitada, gritavam forte Nauru, Nauru, Nauru. Uns dançavam, outros levantavam cartazes. Negavam a cidade. Queriam construir uma ida ao estrangeiro dentro da própria Bauru, queriam emancipar o nosso bairro, isolá-lo, e tudo começava pelo nome: Nauru. Nomeavam para repartir. Achei aquela ideia tão interessante. Um deles me entregou um jornal. Voltei para o meu quarto e dormi mais um pouco.

Versão 2: Nauru me ocorreu quando meu pai entrou no meu quarto e disse: filho, junte suas coisas, vá embora daqui. Você não tem dinheiro e está morando no bairro, vão hipotecar a nossa casa. Eu acordei assustado, fiquei morrendo de medo. A primeira coisa que fiz foi fugir para a aula: deparei-me com gente junta e agitada, conversavam forte. Uns dançavam, outros levantavam cartazes. O professor da faculdade queria que construíssemos um jornal estrangeiro dentro da própria aula, e logo pensei na minha cidade que quase me hipotecava… E se ela fosse outra? Ela me levava ao estrangeiro. Porque mesmo longe dela, eu sigo em Bauru. Eu, Nairon. Nairon e Bauru. Nauru? Achei essa ideia tão interessante. Ela me entregou o jornal. Voltei para o meu texto e escrevi mais um pouco.

Confira mais textos do colunista: socialbauru.com.br/author/sinuhelp.

Ilustração: Ana Zequin

 

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