Ouça: um simples obrigado, obrigado!, manifestado para fora, a gotículas de saliva contaminando o ar, desprendido bafo quente e úmido, arcada dentária reposicionada, beiços assimilando a forma de um bico, por fim de finalidade, carrega na performance uma intenção de estória. Motivo de vida. Porque um pequeno bebê, desde a primeira sinapse silábica, se conecta vogais a consoantes, coleta palavras – somos colecionadores. Cada qual na companhia de sua seleta, fruto de caçada. Anos de silabada. Tudo se amontoa na espécie de canastra virtual, cuja tampa foi perdida ao primeiro som ou risco compreendido como mensagem, recado. Comunicação.

Conselho de antigamente é ter sabedoria e presteza ao cuidar do seu “idiomesmo”, idioma de eu mesmo, construí-lo com parcimônia, escolher palavras, lavrá-las, lapidá-las com martelo e pena, carimbá-las e autenticá-las com a língua, reproduzi-las em alto e bom som e refletir se são o que significam, escondê-las sob o signo do que também não são, pensá-las sem vociferar, agrupá-las em trilhos a serem interrompidos por outro maquinista, plantá-las e lembrar a chuva para regá-las. Labor e paciência.

Sertão… Bauru era vila alta e traiçoeira, das casas pequenas contadas em apenas duas mãos, casas da imaginação. Um pau grande, jacarandoso, no meio de Bauru, dizia sim e não. Era o seu recado fundador. A forasteiros e visitantes, Bauru só existia, avistada com olhos de gente, se um urutau cantador pousasse no topo daquele mastro de origem. Sem urutau, a vila era invisível. O que se dizia sobre Bauru: o seu motivo protetor no pouso de uma ave noturna. Certa feita mudou rumos de uma das poucas famílias locais, palavra de sorte e azar, veneno e remédio, uma visita.

Lídia, do lar, mãe de Lecir, Leslie, Lizete, Luiz. Baurueira, criou os quatro filhos sozinha. Foi daquela casa mastro, mestre, master, mãe – onde todos se apoiavam e cresciam – Lídia líder da lida séria, ela. Seus filhos caçavam, coziam, mergulhavam nos ribeirões de nação unida, Lídia praticamente não saía de casa. Ora costurava com agulha, ora calculava o voo dos pássaros com olhos, ora lembrava as estórias com cesto de frutas. Um outro hábito de Lídia… seu resmungo. Mania. Resmungava, da cara feia, dos dentes podres, dum gosto azedo. Vontade de dizer destino. Contrariada, apontava sua voz ao outro, e repetia, repetia, repetia sempre a mesma palavra de ódio e força e luz: Onça!

Lecir, seu moleque malcriado, solte esses pássaros, eu não sei mais quantas vezes vou precisar pedir a você, solte esses pássaros, não gaiolas não, gaiolas não, não quero pássaros nessa casa, pelo amor de Deus, quem aguenta piação, quem dorme, quem vive, isso não é!, voem, que eles vivam e voem, durmam, vão. Onça!

Leslie, onde estão os meus calçados, eu sei essa travessura, conheço, os seus passos dizem muito, você saiu da minha barriga, tenho vocês nas palmas de calos, meus calos, sei das linhas na sua mão, linhas que também costurei, travessura tem assinatura, mostre os meus calçados, os meus pés estão doendo. Onça!

Luiz… Onça!

Lizete, foi a sua companhia para o evento de ordem sobrenatural. Onça! No domingo de marasmo dilatado, silêncio absoluto, quietude, estranho movimento de nenhum sinal de vida, água de mosquito rajado. Os filhos em aventura de pescaria, voltariam apenas na madrugada da manhã seguinte. Lídia já esticada na cama, relembrada de algumas experiências da sua infância, rotina de exercício para o cérebro – jogo de xadrez e tabuada – dormia com um olho aberto e o outro fechado, estado de mãe. Lizete no quintal, sobre os panos quarados do varal, deitada no chão, encantada por Sirius… quanta força… suas pequeninas mãos atiçadas queriam apontar para a grande estrela, o medo pesava, a mãe Lídia a proibira de mexer com céu. Não há sono se o sonho é luar, quando alguém chamou da porta.

Ô de casa, a voz entrava pelo corredor. Lizete tomou um susto, a vida pacata não pedia alertas de noite, o costumeiro barulho era o canto do urutau, ele só, choro enluarado, em cima do pau de jacarandá. Canto de iluminação. Desconfiada, mas principalmente curiosa, caminhou para o som. O seu espírito temerário. A mãe, se tivesse ouvido aquele chamado, recomendaria precaução. Lizete não. Pé um, pé dois, pé três, pé quatro. A porta. Antes de abrir, ela fez uma frase: quem é?

Eu queria falar com Lídia. As damas da noite odoravam. Tanto cheiro. Lizete não reconheceu a voz. Som de homem, de verbo rasgado, de pronúncia dificultosa. Da parte de quem? foi a segunda frase de Lizete. Por favor, abra, apenas quero falar com ela, respondeu a porta. Resoluta e adolescente, o impulso de Liz sorriu. A mão na maçaneta, o som da curiosidade, desejo de estória, a vida sem precedentes. O seu coração batia no ritmo da vinda: cor um, cor dois, cor três, cor quatro. A porta. Ao abrir, ela fez uma nova frase: a minha mãe está dormindo.

Esquálido. Um homem sujo. Fedor. Muito cansado, da aparência de alguém sem água há dias. Sede. Um estranho, forasteiro. De uma zona fronteiriça. Lunático? Não era baurueiro. Nunca visto. Um homem feio. Por favor, você poderia chamar a sua mãe? Eu preciso falar com Lídia – súplicas de um azedume. Lizete não disse palavra sequer. Deu as costas, fechou a porta e foi chamar mãe. Encontrou Lídia em pé, ao lado da cama, fumando um cigarro. Mãe sempre. Sempre sabe. Costura as linhas de matéria vida. Quem é você?, disse ao homem. Eu não te conheço. Um firme resmungo.

Lídia, obrigado por me receber. Estou realmente surpreso de encontrá-la. Você, a sua filha, ninguém sabe o que eu passei para estar aqui. Caminho árduo e penoso. Não sei como estou vivo, acho que sou milagre. Agradeço a quem não conseguiu a minha morte. Venho de muito. Muito… Esta cidade me paga, sobrou-me pouco. Dias e noites e dias até encontrá-la. Fiz e me refiz para estar diante desta porta. Fui maior que eu. Não pude perder a trama, penelopando. Tudo me trouxe até aqui, nasci para aqui. Você me disse tanto. O meu nome. Venho mesmo chamado mil vezes, para por fim e finalidade, atendê-la… Eu sou a Onça!

Olhos de assombro em Lídia. Lizete sem acreditar. Mãe e filha não entendiam. Nada. Um homem de azedume se dizia Onça, vinha por que mãe chamava? Onça! Aquele nome resmungado, de noite e de dia. Lizete deu um passo para trás, Lídia para frente, Onça os dentes. Lizete correu para dentro de casa quando de acrobacia combinada, Lídia e Onça se abraçaram em ataque de fúria, dança da morte, soma de noventa e nove com um, ar no catavento pintado de yang e yin.

Labuta, luta, lua. Luz límpida lambia, lambia, lambia Lídia. Lástima. Labaredas, lero lero. Lúdicas ladravam lugares, labirintos. Lerda lida… longe, lustre lembrava lar… Lecir, Leslie, Lizete, Luiz. Latidos… loura latia. Lúcida, Lídia lia lenda. Lata! Língua laranja, linhas, latins. Limites? Liberdade! Livramento! Lamentava lembrete – linchava leoa. Lacônica: lágrimas. Lucrou. Licença?

Exaurida de suor e choro sem vela, de sangue na roupa rasgada e língua para fora, a Onça foi derrotada por mãe Lídia, mãe fera, mãe de nomes, mãe de lua, de Bauru, baurueira. Largada no jacarandá, o urutau ria, moradores acordavam, olhavam. A Onça encostada no pau antigo, o seu tronco apoiado na madeira, a cabeça olhando para os pés de pernas juntas, um homem feio e triste, a Onça sentada na base do mastro, murcha, formava uma letra. L.
Obrigado.

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