Ah… Visita alegre. No tempo em que nossas bisavós eram molecas e a Avenida Nações Unidas um grande ribeirão cujos peixes eram sabidos e valentes, um homem de longe, de mala em punho, equilibrava-se nos trilhos do trem, à corda bamba. Tal forasteiro não era bauruense, não. Era originário de outras bandas, vilas longínquas, terras sem lei. O motivo da sua visita? Ideias, ideias, ideias. 

Bauru das primeiras estórias, primeiros tempos. Uma pequena roda de curiosos se formou na Rua dos Esquecidos. No olho do furacão, também olho de mosquito, o homem de longe abriu a sua mala, seu gabinete de curiosidades, pequena e suficiente, casa de bugigangas e penduricalhos. Olhos a postos (de perto). O que aquele mascate apresentaria aos bauruenses? Todo mascate tem o seu roteiro. A norma dum caminho de se apresentar. 

Começa pelo nem tão bom, nem tão ruim. Talvez algo que brilhe a alguns olhos. Mas não todos. Nunca se entrega o ouro de primeira. Nunca. Tem muita palavra à frente, muito gesto, muita gente antes do final. E outras etcéteras. Mas o mascate era diferente. Trazia apenas uma coisa, trazia a coisa, a coisa inteira. Única e unânime. 

Descobertas de um pano verde, o homem tirou diversas placas. Placas de alumínio, provavelmente descartadas de oficinas e latarias, material sem valor, lixo, quaisquer. Contudo… as suas placas eram pintadas. Tinta por ele mesmo. Traziam frases bonitas, grandes, desenhadas e desconhecidas da turma ao seu redor. 

Estas placas de cor trago de Cordisburgo, disse o mascate. O que era Cordisburgo? Ninguém em Bauru sabia. São placas da minha terra, placas do coração, placas cuja pintura formou um povo, a sua língua, o seu charme, e a sua invenção. 

Falava com muito gosto, os olhos do homem de longe brilhavam. Parecia estar sob efeito de um vigor inesgotável, pleno e saudável, o tempo todo. Envolvido à força daquelas placas como se guiassem a sua vida, o seu caminho. A norma. 

Guiavam mesmo, talvez? Sem dúvidas. Ou melhor, as placas eram apenas a fôrma, o registro que ele pintava. O sentido de suas frases era a sua riqueza. O texto. O significado. Que significa? Ele parecia encantado. Queria pregar aquelas palavras por toda a cidade, para toda a gente. Bauru! Quem vivesse que lesse e escutasse. 

Hora foi passando uma a uma, de mão em mão, e os curiosos se acostumavam. Uns proclamavam em voz alta. Quem não sabia ler, ouvia. A mensagem era clara. Sob o som e o sentido daquelas palavras, tal vigor do mascate foi também contagiante. As pessoas vigoravam. Ficavam encantadas. Movidas pelas palavras. Brilhavam! 

Insistia o mascate que aquelas frases não eram suas. Boas, sim. Mas não suas. Eram boas porque vinham como recado. De boca a boca. Alguém que contou para o outrem, e outro para o outro. E outro outro guiou a frase até a placa. Pintou! 

Juntos gostaram todos da ideia de pregar placas pelas vilas de Bauru. Que as pessoas não se zangassem, mas as frases eram tão bonitas. Tempos antes o Seu Batista de Carvalho já tinha pregado uma frase, Rua dos Esquecidos, em uma placa poderosa que faria de seu nome um verbo: batistar. Força de nome. 

Karma ou não, conseguinte ao Batista, voltavam as placas poderosas a Bauru. E se esparramaram. Das poucas ruas bauruenses, todas estavam aplacadas, isto é, carregavam uma frase no coração. Vizinhos acordavam com os barulhos dos pregos às marteladas. Alguns se incomodavam, alguns tentavam ler, alguns se incomodavam ao tentar ler. 

Logo todas as placas acabaram. Todas pregadas. Os bauruenses brindavam a alegria. Davam vivas ao mascate. Parecia que aquele senhor vindo de Cordisburgo trazia

em sua mala um convite para a infância. Todos aqueles adultos bauruenses brincavam, gargalhavam. Tudo pelas placas. O tempo era mesmo implacável. 

Me desculpem, vocês — disse — mas preciso contar. Eu não estou em Bauru por um acasinho. Não vim pregar placas a Deus dará. Desculpem-me os pregos. Martelos, condolências. Eu não vendo placas. Ops. Estou cumprindo a minha missão, fiz promessa. Sou homem de pagá-la, custe o que custar. 

Ninguém entendeu bulhufas sobre o que o mascate dizia. Entreolhavam-se. Queriam continuar brincando de placas, hora do recreio. Um pequeno curioso, entre o grupo, levantou-se para dizer, inflou o peito, segurou o ar, pletorando. Todos pararam. E disse — pois conte a promessa! 

O mascate sorriu: com a satisfação de quem espera e alcança em esperança. Era o seu desejo, a pergunta, a indagação, o questionamento. O momento. E ele esperou tanto… Guardava o ímpeto de contar — como um cacto, duro de estruturas tuas, espera o momento de prima, de dor e gozo, para brotar botão que será flor. Dói. E este mascate cacto, sem mau acto, mascacto, mascado, mascarado e dês, desmascarado, queria contar — e contou. Máscara no chão. 

Pois digo! — respondeu. Não conto o santo, nem o milagre, meus pertences. Mas a promessa, demais, o mastigado, compartilho. Compartilhar. Que em minha terra, também chamamos de quinhoar. Dividir tim por tim, silabar: com, par, ti, lhar. Dividir com vocês. 

Que para cumprir tal promessa, dado o milagre, o apoio do santo, o mascate deveria juntar tantas placas de latão e, sobretudo, dormir. Durante sete dias, acordaria com uma frase em pensamento, ininterruptamente, como se esta fosse sussurrada em sonho. Ao acordar, deveria pintá-la nas placas, coloridas, vivas! Vidas! 

Rezei dos pés juntos todas as manhãs, amanhecido de frase — feliz e mascate — como se a vida tomasse novas cores. E pintava: cor, coração e coragem. Mas a promessa não terminava ao acordar. Esquecer não podia. Passados os setes dias, o mascate deveria conhecer uma nova cidade, e nesta, pregar as placas pelos sete cantos. 

Senhor diz isso, eu acredito, mas… — resmungou a senhora com uma rosa na cabeça — você viveu o milagre verdadeiro e sozinho! Só. E fez de nós cúmplices para cumprir a promessa. Por que também não fomos cúmplices no ato de seu fato, no seu abrir botão de cacto, no seu milagre tão deitado, das frases de seu rabiscado? 

Tinha a senhora alguma razão. O mascate hipnotizara todo aquele grupo para a promessa completar. Pois bem — redimiu-se — vocês muito que agradeçam, estão certos como partes de um milagre! Quinhoar. Vivos e abençoados. Se a promessa foi cumprida, vocês são parte do todo, são o todo, São Todo, povo metonímia, são o milagre! Nós milagres. 

Ué, hum, er… isso é bacana — disse aquele senhor da máscara ao chão — mas por que sanduíches de rosbife, pioneiros espanholes, cines de bela vista, o senhor veio cumprir a sua promessa em Bauru, esta cidade no coração do estado de São Paulo? 

Você trouxe essa feita, neste momento!, como em roteiro de peça de teatro, escrito em papel branco. Você sonhou com esta pergunta? Quem te soprou? 

Xi… mascate já não fala lé com cré — suspirou a senhora. A — isto é sério, minha senhora, seríssimo. O que este senhor perguntou — e é o seu segundo acerto neste dia — é o coração de minha vinda. As rodas de minha carroça. O cerne. Minhas roças, onde plantei só. Não estamos combinados, senhor, estamos? Quando de minha iluminação para este milagre, tempos antes, à pintura de minha promessa, uma das exigências, postulada, dizia — devo pregar as placas em cidade homônima a minha, onde nasci! Cordisburgo.

Wusp! — cuspiu a senhora. Donde o senhor tirou que Cordisburgo e Bauru têm o mesmo nome? 

Yes. Elas têm, por incrível que aconteça, cresça e desapareça. Antes de serem, oficialmente, Bauru e Cordisburgo, ambas se chamavam Vista Alegre, homônimas! Cidades irmãs! E alguns da roda concordaram com a cabeça, entreolhavam-se, mais concordando, mais uníssonos, sim, concordando e acordando, abrindo sorrisos e sonhos. Sim! Eram irmãs! De nome, como todo nome é uma bênção e também um elo, uma semelhança, uma simpatia, uma razão de viver. Quem tem nome, existe, sim. E quem já teve — também. Vista Alegre! 

Zarparam todos, em fila, para Cordisburgo, como trem vivo, cores vivas, vidas. Antes da partida, juraram dos pés juntados para o santo do mascate, sob a promessa de ouvir, pintar e pregar placas, se conseguissem alcançar a cidade homônima a Bauru. E foram, direção nordeste, contrária a noroeste, levando café com pão, cobertores e travesseiros e, sobretudo, cantando: olererê, baiana…

Confira mais textos do colunista: socialbauru.com.br/author/sinuhelp.

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