Quando o chef Paulo de Tarso (54) começou a arriscar receitas inusitadas nos churrascos para amigos de faculdade, aos 18 anos, ele já vislumbrava uma carreira na gastronomia, mesmo que o universo dos chefs ainda não fosse tão familiar aos brasileiros.

Era um período em que o olimpiense (que veio ainda criança para Bauru) estudava Direito na ITE – chegou a trabalhar na área – e dividia o tempo com os eventos nos quais criava cardápios e comandava a cozinha.

Não era apenas uma vontade de estar na cozinha, e sim uma genuína paixão por gastronomia. Ao longo de quase 40 anos de carreira, ele demonstrou uma trajetória impulsionada por foco no aprendizado, criatividade e busca constante pelo reconhecimento do que é ser um chef.

Hoje, agradecendo às “mulheres da vida dele” (a mãe Dona Mércia e as irmãs Valéria e Veridiana) pela paciência, ele brinca que um chef entrega a alma para a cozinha. “Eu não conseguiria cuidar nem de uma samambaia de plástico, pelo tempo que passo fora de casa”, diz.

Chef de Bauru

Estudos, técnicas, conceito e criatividade

A filosofia do chef Paulo gira em torno de algumas características. O aprendizado é um dos mais importantes, especialmente pela quantidade de anotações e cadernos guardados e do tempo que passa estudando para preparar um cardápio e pratos, seja dos eventos ou dos restaurantes.

Isso significa também que ele adora explorar as possibilidades da cozinha. “A gastronomia é lúdica”, é como ele resume o ramo. Por isso, Paulo aposta no que ele chama de comfort food, no qual a comida ativa memórias e tem uma história, um conceito e uma ligação com as pessoas. Isso exige respeitar as técnicas gastronômicas e a capacidade de viajar por diferentes culturas de alimentação. 

Chef de Bauru

O respeito também se estende ao título que carrega. Por um lado, sabe de todas as responsabilidades de um chef de verdade, além de fazer uma boa comida e pensar em cardápios coerentes e conceituais. Por outro, cobra reconhecimento e maiores salários.

São características perceptíveis na trajetória de Paulo e nas histórias que ele compartilhou com o Social Bauru em cerca de duas horas de entrevista.

Chef de Bauru

Dos churrasco ao aniversário de uma senhora de 80 anos

É possível dizer que Paulo iniciou a carreira gastronômica aos 18 anos. Isso porque recebia para comandar a churrasqueira nos encontros de amigos. Com o passar do tempo, ele começou a ser contratado para eventos, denominando-se ‘personal cooker’.

Antigo cartão de visita

O título surgiu da especialidade dele: o comfort food. “É pensar um cardápio para confortar a alma”, explica. “Eu não passo opções de cardápio, e sim pergunto ‘Como posso te encantar?’”, diz.

Chef de BauruNos eventos, ideia é contar a história do cliente pela comida (foto: Acervo Pessoal)

Ou seja, a ideia é personalizar os pratos ao evento e fazer surgir memórias afetivas por meio da comida. Por isso, antes de elaborar um cardápio, ele senta com os clientes para conhecer as histórias e as expectativas dos convidados.

Um episódio marcante foi o aniversário de uma senhora de 80 anos, que vinha da região da Calábria, na Itália. Paulo e a parceira de trabalho nesse serviço, a Ana Carolina Borges, decidiram tentar recriar pratos típicos de lá.

“Na hora que eu servi e fui explicar o prato, todo mundo ficou na expectativa. Ela pôs o garfo na boca e chorou lembrando da infância. Aí chorou os filhos, chorou eu, chorou a Ana… Isso é gastronomia para mim”, conclui.

Chef de BauruFoto: Acervo Pessoal

Primeiros professores: avós dos amigos e revistas

Apesar de já estar trabalhando, Paulo tinha o sonho de fazer faculdade de gastronomia. O único curso na região era em Águas de São Pedro, mas ele não tinha como pagar.

Chef de BauruFoto: Acervo Pessoal

Ele ficou abatido, mas decidiu continuar a especialização em gastronomia de outras formas. Primeiro pelas experimentações nos eventos. “Nos churrascos, por exemplo, eu pensava: se tem esse vinagrete, por que não fazer com manga? Eu estava sempre me questionando”, relembra, contando também como cada evento o fazia ampliar as técnicas de diferentes culturas.

Além disso, buscando aumentar o repertório, ele encontrou uma fonte de conhecimento nas mães e avós de amigos. Sem internet, as conversas e a ajuda enquanto elas cozinhavam se tornaram referências para descobrir boas receitas e os modos de preparo. 

“Era o que eu tinha em mãos! Batia lá na porta delas e pedia para passar a tarde. Imagina a felicidade de uma senhora em receber uma companhia para o dia todo (risos). Elas adoravam, e eu aprendi muito”, diz.

Chef de BauruFoto: Acervo Pessoal

“Enchendo o saco” do chef Thompson Lee

O sonho da graduação veio apenas em 2004, quando entrou na primeira turma de Gastronomia do Unisagrado. Para pagar os estudos, contou com o apoio de amigos e familiares. “Por isso eu digo que a cozinha foi uma batalha constante na minha vida. Tudo foi uma luta para mim na gastronomia”, diz.

Na faculdade, Paulo combinava a experiência com horas na biblioteca, conversas com os professores e as constantes anotações nos cadernos.

Chef de Bauru

Foi nessa época que conheceu o chef Thompson Lee, um mestre na cozinha asiática e que havia inaugurado um restaurante em São Francisco Xavier. Um estágio no local era cobiçado por quase todos estudantes, mas Paulo “encheu o saco” dele até conseguir uma vaga, trabalhando lá por três meses. “Eu lembro dele falando que nem adiantava pedir porque já tinha uma fila. Eu não me importei. Eu perturbo mesmo (risos)! Falei com ele até conseguir”, conta.

Um dos maiores encontros de moto do Brasil

Em 2013, Paulo conseguiu o primeiro emprego para liderar uma cozinha: no Beatniks Road Bar, em São Carlos, um bar conhecido por encontros de motoqueiros e com estilo gastronômico Tex-Mex.

No início, Paulo teve que lutar. Ao introduzir mudanças em busca do próprio estilo, encontrou resistência por parte de alguns funcionários. Uma das principais alterações foi a ênfase na produção artesanal de todos os itens, como hambúrgueres, molho barbecue e acompanhamentos.

Com o tempo, dominou a cozinha e passou inclusive a conseguir atender altas demandas. Uma memória desse período foi quando atendeu um encontro de apaixonados por Harley-Davidson, que reuniu mais de 400 pessoas. “Parava a cidade, era uma coisa incrível!”, conta.

Chef de BauruFoto: Acervo Pessoal

A panela de 25 kg de arroz no Hotel Casa Grande

Outro experiência em cozinha foi durante um estágio no Hotel Casa Grande, que tinha um cerca de 1,8 mil funcionários atuando em três turnos. Nesse ambiente, as características de uma cozinha tradicional eram evidentes, com disciplina rígida, diferentes tipos de chef, uma hierarquia estabelecida e a presença das chamadas brigadas.

Até pela quantidade de funcionários, Paulo teve a oportunidade de conhecer todo tipo de profissional da cozinha, desde os mais responsáveis e rigorosos aos mais habilidosos e técnicos.

Até hoje ele lembra do “espetáculo, quase teatro”, como ele enfatiza, de um grupo de quatro funcionários do hotel, responsáveis por preparar 25 kg de arroz em uma panela gigante.

“Eles juntavam para fazer essa quantidade de arroz, que era uma coisa absurda. E faziam de um jeito que nunca vi, nem em livro. Ele [o responsável pela técnica] colocava água só até a boca do arroz, aquilo secava e virava uma pedra. Aí ficavam quatro pessoas com um remo numa panela gigante para virar essa pedra, que não desmanchava. Depois eles punham a mesma quantidade de água até a boca e ficava soltinho”, conta. “E o arroz ficava inacreditável. A cozinha parava para assistir! É a arte da gastronomia… e do brasileiro”.

Vencedor do Prêmio Impera de comida de boteco’

Depois dessas experiências, Paulo retornou a Bauru para trabalhar no Comprando, por cerca de um ano. Devido à pandemia, Paulo saiu de lá, passou seis meses parado e voltou, aos poucos, aos eventos até ser chamado para assumir a cozinha do Bendito Santo. 

“Entrei em uma casa de 15 anos já consolidada, pensando no que podia melhorar. Comecei a pensar em um cardápio conceitual”, relembra.

Uma das grandes conquistas no Bendito Santo foi ser vencedor do Prêmio Impera na categoria Comida de Boteco, com o ‘Metido a Besta’. Para criar a iguaria, o chef se dedicou a um estudo aprofundado sobre a culinária de bar, pesquisando o tradicional e acompanhando as tendências.

Metido a Besta

Decidiu fazer um bolinho, algo comum em Bauru, mas com ingredientes inusitados. No final, “como que por uma iluminação divina”, veio a ideia do ossobuco com polenta e o queijo da Serra da Canastra. Para ficar perfeito, chegou a consultar especialistas na técnica de defumação para ressaltar o sabor.

Chef de Bauru

Imagem de São Benedito que ele carrega desde o início da trajetória

Como desenvolver um cardápio de bar

Depois do Bendito Santo, foi consultor do Gostoso Botequim, que tem a proposta de ser um bar das capitais Rio de Janeiro – São Paulo Para criar o cardápio, estudou cerca de 110 bares por dois meses. “Fui entender o que estava acontecendo, estudar o Rio de Janeiro, entender o porquê do termo botequim, pensar as origens portuguesas dos bares cariocas, etc”, conta.

Esse foi o tipo de trabalho que o faz defender ainda mais o que é ser um chef de verdade. “Não é uma formação, e sim um título de hierarquia que você conquista”, afirma.

Como ele explana, um chef pensa como será o serviço, o atendimento, compra os equipamentos de acordo com o cardápio, pensa os pratos de acordo com o volume de produção (para não ter desperdício) e controla o estoque. É preciso pensar na organização da cozinha, na gestão e na liderança da equipe.

Ensinando jovens em Agudos

Se inicialmente Paulo não conseguiu estudar no Senac de Águas de São Pedro, ele depois voltou para uma especialização e, mais recentemente, virou professor da unidade de Bauru, para o atendimento corporativo da instituição.

Nesse trabalho, ele vai até os locais para ensinar de acordo com a demanda. Um exemplo foi a parceria com a Prefeitura de Agudos em 2016 para ensinar 30 jovens aprendizes de 15 anos. Além de ensinar receitas e técnicas, também desenvolveu, nos jovens, habilidades essenciais para o trabalho em equipe na cozinha, como liderança, higiene pessoal, limpeza e manipulação de alimentos.


Aulas pelo Senac (foto: Acervo Pessoal)

Outro serviço para o Senac foi em Reginópolis. Nesse caso, o objetivo era auxiliar pessoas de menor poder aquisitivo a gerar renda por meio da gastronomia, como por exemplo, abrir um carrinho de cachorro-quente.

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Foto: Acervo Pessoal

Sashimi em formato de papa

Uma das últimas inovações na carreira do chef Paulo foi fruto de uma pesquisa realizada na USP, após receber o convite de uma nutricionista.

A proposta era atender pacientes com disfagia, ao criar pratos que pudessem passar pela garganta, especialmente papas, mas que tivessem as características de pratos tradicionais. A ideia é que uma boa comida ajuda no tratamento. 

Um dos pacientes “atendidos” por Paulo foi um japonês, no qual ele teve o desafio de reproduzir a sensação de comer sashimi em uma textura adequada.

Foi uma experiência que o fez relembrar do pai. “Meu pai morreu de câncer na garganta, apreciava comer, e eu não pude alimentá-lo nos últimos quatro anos de vida”, conta. 

Como sempre, são histórias ligadas ao prazer de comer. De alguma forma ou de outra, Paulo – que garante que a comida favorita é a da mãe – entende a gastronomia como uma relação de memória afetiva.

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